Uma argentina e outra zambiana, ambas nascidas em países colonizados: como essas autoras de ficção científica estão trazendo um novo olhar sobre vigilância e privacidade a partir de uma crítica ao eurocentrismo e ao colonialismo.

Estamos cada vez mais conscientes sobre o problema do vazamento de dados ou da responsabilidade daqueles que recebem e mantêm nossas informações. Só nessa semana, já fomos confrontados por três notícias emblemáticas sobre essa questão: o caso Neymar e a exposição pública de fotos íntimas, a notícia de que diferentes grupos religiosos e antiaborto financiaram um aplicativo de mapeamento do ciclo fértil feminino e, finalmente, a quebra de privacidade do iPhone causada por aplicativos.

Se o romance distópico 1984 já falava sobre quão assustador ter um órgão, como um governo totalitário, tendo acesso a todas as informações das pessoas como uma forma de controlá-las, hoje vemos o exemplo da China e da proposição de que talvez não precisemos mais de uma democracia em um momento no qual poderemos nos orientar primariamente a partir de dados. Entre as provocações sobre liberdade e segurança, privacidade e conveniência, surgem dois novos romances de ficção científica que trazem o tema da vigilância com um novo olhar, como destaca reportagem do site The Atlantic.

Escrito por Lily Meyer, o artigo abre com uma citação de um importante ensaio escrito por Ursula K. Le Guin em 1975, quando a autora comenta que o grande foco da ficção científica é “a questão do Outro — o ser que é diferente de você. Esse ser pode ser diferente de você em seu sexo ou em sua renda anual, ou na sua forma de falar e se vestir e fazer coisas, ou na cor de sua pele, ou no número de pernas e cabeças.” Como continuação de seu raciocínio, Le Guin também comentou como na ficção científica americana os alienígenas humanos, isto é, mulheres, negros e pobres, são muitas vezes subjugados ou negligenciados por alienígenas que vieram do espaço, os quais, em troca, são muitas vezes assassinados ou têm seus planetas colonizados.

“Chega, escreveu Le Guin. Hora de fazer o gênero a verdadeira face do futuro. Para isso, escritores precisam tomar uma atitude antirracista, antissexista e anticolonialista em suas obras. Eles têm que considerar ‘conceitos tão profundos e radicais de futuro quanto a Liberdade, Igualdade e Fraternidade.’”

Nesse sentido, dois novos lançamentos, Dark Constellations de Pola Oloixarac e The Old Drift de Namwali Serpell seguem à risca o conceito de privacidade de acordo com as premissas de Le Guin. As escritoras argentina e zambiana, respectivamente, escreveram histórias que se passam em seus próprios países, então criando “futuros pós-coloniais nos quais a vigilância apresenta novos perigos perturbadores”, descreve Meyer. Enquanto Dark Constellations tem uma escrita mais descontraída, The Old Drift é um épico com detalhes dignos de uma pintura de Hieronymus Bosch, segundo a jornalista. Em ambos os casos, porém, somos apresentados a narrativas provocativas com uma ideia central: “o colonialismo foi uma invasão de privacidade imensa, e a tecnologia está indo a caminho de rivalizar isso.”

Enquanto o romance de Oloixarac trata da história de um hacker chamado Cassio que começa a trabalhara para a Stromatoliton, uma empresa de vigilância baseada em DNA que estabeleceu uma parceria com o fictício Projeto de Unificação de Dados Genéticos Latino-americanos de modo a manter seus olhos e atenções voltadas a tudo que os cidadãos fazem. De acordo com Meyer, apesar de a agenda da empresa ser clara, Oloixarac não aponta para um vilão específico e uma dicotomia entre o bem e o mal, mesmo porque o protagonista também começa a tomar certas decisões controversas e destrutivas conforme sua sede por poder cresce ao longo da história.

Mas, diferente do olhar pessimista da autora latino-americana, Serpell descreve um universo complexo, mas que tem em seu cerne uma oposição hegeliana clássica: quando o colonialismo e o anti-colonialismo colidem, o resultado disso é a Zâmbia ficcional de Serpell. Ao abrir a história na virada do século 20, Serpell descreve as observações de um colonizador britânico chamado Percy Clark enquanto uma ponte era construída nas intermediações das cachoeiras Victoria no que então era chamado de Rodésia do Sul. “No final, um trio multirracial de revolucionários zambianos destrói a barragem do lago Kariba. A função do colonialismo, como sugere o romance, é conter o poder; a função do anticolonialismo é libertá-lo”, escreve Meyer.

Da virada do século 20 até a independência da Zâmbia e os esperançosos anos 1970 marcados pelo socialismo, o romance The Old Drift trata de um futuro próximo no qual um governo autoritário permitiu que um consórcio sino-americano tivesse acesso quase ilimitado ao país. Esse consórcio acaba comprando as fontes de energia da Zâmbia, bem como a própria represa do lago Kariba e, então, começa a fazer experimentos médicos com os locais.

“Os três protagonistas da parte final de The Old Drift são todos cúmplices, em certo nível. Naila trabalha para um escritório do governo que instala pedras com wi-fi gratuitas e compulsórias nas mãos dos zambianos. O governo usa essas pedras para monitorar os cidadãos e, em certo ponto, para testar uma vacina experimental contra o HIV sem seu consentimento — uma vacina que o namorado de Naila, Joseph, ajudou a desenvolver e que foi entregue com a ajuda dos drones que seu amigo Jacob inventou.”

Namwali Serpell

Ao entender os perigos dos projetos com os quais eles estavam corroborando, os três personagens acabam se juntando para rebelar contra esse sistema que, assim como em Dark Constellations, põe em xeque a questão do poder estatal e da autonomia pessoal. É nesse sentido que Meyer resgata uma outra citação de Le Guin, no qual a autora sugere que se pare de “sonhar acordado com um retorno à Era Vitoriana e [começar] a pensar sobre o futuro. Eu gostaria de ver … um pouco de idealismo humano.” E como se seguisse diretamente a essa recomendação, Serpell abre seu romance com uma história se passando ao fim do reinado de Vitória e com uma explosão de idealismo. “Naila é a heroína que Le Guin provavelmente adoraria ver: ela é jovem, mulher, zambiana de ascendência indiana, e militante contra a opressão global. Jacob e Joseph podem ser inventores, mas Naila é quem tem uma visão de futuro para as nações previamente colonizadas”, descreve Meyer.

Nesse sentido, diferente de Dark Constellations, o romance zambiano traz uma coragem revolucionária que não perpassa pelos personagens do livro argentino. De qualquer modo, como destaca a jornalista, ambas as obras reforçam quão facilmente a vigilância se disfarça como progresso e isso é exposto de formas sutis conforme o colonialismo persiste na vida política contemporânea.

“Para isso, Serpell enfatiza as disparidades financeiras globais, enquanto que Oloixarac se foca na intelectualidade da colonização até a dominância tecnológica. Em Dark Constellations, porém, essa dominação é impossível de resistir. Em The Old Drift, não só é possível, como também é uma escolha moral necessária”, escreve Meyer, finalizando que, talvez seja justamente isso que faz com que “Oloixarac, com sua precisa descrição da misoginia da indústria tecnológica, uma escritora mais realista, mas há muito mais do que o idealismo de Le Guin no futuro de Serpell, o qual, ao fim do livro, mostra-se inédita e radicalmente livre.”

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