Há uma famosa citação do violoncelista Jan Vloger em que se diz que arte é aquilo que nos torna humanos. No entanto, cada vez mais se discute (e se vê exemplos) sobre a capacidade de máquinas e de algoritmos dotados de uma “verdadeira” inteligência artificial também poderem produzir suas próprias formas de arte.
O caso mais popular é o do vídeo The Next Rembrandt, no qual um programa faz o reconhecimento de padrões nas pinturas do artista holandês e cria um novo quadro a partir dessa leitura. Outro exemplo é também o projeto About a Theory of Graffiti, criado pelo artista yango2 e que foi exposto no evento Artificial Intelligence Art and Aesthetics Exhibition em Okinawa, este ano.
No entanto, o artista e curador da exposição Hideki Nakazawa questiona realmente até que ponto essas obras e projetos realmente proporcionam uma certa “autonomia” do programa ou quanto eles acabam ainda dependendo muito da ação e decisão humana, o que ultimamente nos mantém como artistas e a AI como uma ferramenta para a criação artística.
No caso da instalação exibida em Okinawa, a obra envolvia um computador rodando uma inteligência artificial treinada com imagens de graffiti e, com isso, ao conectar-se a um spray de água sobre um bloco de concreto, o programa criava novas obras a partir de uma combinação de padrões analisados a partir de seu banco de imagens.
Nakazawa então questiona se isso seria realmente uma obra arte, afinal. “Se é, então precisamos confrontar a possibilidade de que alguma parte de nossa humanidade — à qual Vloger se referia — foi capturada pelas máquinas. O fato é que, na verdade, enquanto o produto da máquina pode ser artístico, ela não está fazendo uma arte verdadeira”, ele escreve.
O autor assim o entende conforme esse tipo de arte é feita para satisfazer as necessidades de um terceiro que, no caso, seria o programador contratado pelo artista. Trata-se, portanto, de uma ilustração ou arte comercial, mas não de uma verdadeira arte, uma obra que poderia se enquadrar dentro do conceito de belas artes.
“Se uma verdadeira arte puder ser feita por uma IA, então ela tem que ser para si mesma: produzida pelas máquinas de forma autônoma, independente e ativamente de acordo com a própria vontade da máquina e com a estética da máquina. Só assim a arte não seria passível de ser um produto da criação humana.”
Desse modo, para que uma máquina tivesse tamanha capacidade de autonomia e raciocínio (ou mesmo criatividade), seria necessário criar o que se conhece como uma “verdadeira inteligência artificial”. Nakazawa, como um dos curadores da exposição realizada em Okinawa, via como um dos problemas ali endereçados o fato de que essa categoria na arte ainda não existe.
Para tratar disso, a exposição contou com quatro categorias: 1. Arte e Estética Humanas, 2. Arte Humana/Estética da Máquina; 3. Arte da Máquina/Estética Humana, 4. Arte da Máquina/Estética da Máquina. Enquanto a primeira categoria incluiu obras convencionais feitas por seres humanos, as categorias de número 2 e 3 apresentaram exemplos híbridos de arte feita na interação entre homem e máquina. Por outro lado, aponta Nakazawa, na quarta categoria, não existia nada a ser exibido, porque nada realmente se enquadraria nesse quesito, apesar de existirem aproximações.
“Cada categoria nos ensina suas lições. A arte da Categoria 1 mostra a transformação histórica da estética para além da perspectiva dos olhos de Deus para uma perspectiva mais humana. A maioria das artes sistêmicas do século 20 apresentadas na Categoria 2, incluindo o minimalismo, música serial e poesia visual, é caracterizada pelo uso de regras ou fórmulas matemáticas. Pode-se considerar que a arte sistêmica teve seu pontapé inicial com a Torre Eiffel em 1889. Muitos artistas famosos se opuseram à construção da torre, como foi o caso do pintor William Adolphe Bouguerau e do romancista Guy de Maupassant, porque eles viram sua aparência plena e o design calculado por máquinas como algo um condenável abandono da estética humana. O fato de que a Torre Eiffel parece tão bonita para muitos de nós hoje é a lição central da Categoria 2: nosso senso estético pode ser modificado pela matemática e pelas máquinas. A Categoria 3 contém um tipo do que se chama de arte midiática, a qual é produzida por máquinas e IA, e ela nos mostra que mesmo como um produto passivo da criação humana moderna, a inteligência artificial é capaz de produzir objetos de beleza.”
Isto é, ao mesmo tempo que as primeiras categorias apresentam a transição da arte à serviço da fé para uma virada humanista (da Idade Média ao Renascimento e à Modernidade), traçamos agora o caminho para uma nova mudança de olhar para a inserção da IA na história da arte. Porém, questiona Nakazawa, para além de nos perguntarmos sobre a possibilidade de uma verdadeira inteligência artificial produzindo arte de forma autônoma, como pensar sua estética?
O curador, então, traz a referência de Platão, de quando o filósofo diz que “o verdadeiro, o bom, e o belo” são coisas que têm valor por si só, portanto não servem para algum propósito ou finalidade. “Fazemos o bem pelo seu próprio valor, e assim por diante. Para que uma máquina faça sua própria arte, ela precisa satisfazer o dito de Platão e criar sem nenhum propósito utilitário. A questão em aberto, porém, é se as máquinas algum dia serão capazes de o fazer”, escreve Nakazawa.
O artista acredita que as perspectivas são positivas, uma vez que não só os seres humanos são capazes de criar arte sem fins utilitários. Chimpanzés, por exemplo, ao terem acesso a materiais artísticos são capazes de desenhar a seu bel prazer — aliás, alguns desenhos feitos por chimpanzés e um bonobo também foram expostos em Okinawa e foram classificados na Categoria 4, Arte da Máquina/Estética da Máquina, como uma forma de suscitar a reflexão sobre as possibilidades futuras. Agora, como atenta Nakazawa, se os animais tivessem que desenhar em troca de receber bananas, por exemplo, então não seria possível de se enquadrar nessa categoria, porque, novamente, a arte não teria sido produzida por vontade própria.
“Para a IA chegar onde os chimpanzés estão, há dois passos a serem dados. Primeiro, a IA precisa ser capaz de gerar seus próprios objetivos. Os objetivos das IAs de hoje são programdos por humanos, que escrevem as chamadas funções de avaliação para calcular quão bem ou mal um algoritmo está funcionando em determinado espaço de tempo. A primeira peça de arte feita por máquinas que se qualificaria na categoria 4 precisaria ser capaz de escrever suas próprias funções de avaliação.”
Durante a exposição, Kenji Doya, professor da unidade de Computação Neural da OIST, realizou junto de sua equipe de desenvolvimento de robôs de smartphone o experimento “Can Robots Find Their Own Goals?” (Os robôs podem encontrar seus próprios objetivos?). Para isso, eles posicionaram uma coleção de robôs de smartphone em rodas em uma área comum. Enquanto os robôs conseguiam transitar livremente e achar seu próprio lugar de forma independente, essas máquinas também podiam trocar programas ao escanear QR codes disponibilizados pelos demais.
“Recarregar a energia era um análogo de alimentação, e trocar os programas era um análogo de reprodução. Os robôs que não se recarregassem paravam de andar, e aqueles que não trocavam programas não passavam seu ‘DNA’ para as próximas gerações. Com o tempo, os robôs começaram a escolher seus próprios objetivos: Alguns pararam de carregar ou de perseguir outros robôs, por exemplo, um comportamento que não havia sido programado. O resultado desse e de outros experimentos convenceu Doya de que robôs podem realmente determinar seus próprios objetivos.”
Por último, Nakazawa ainda vê o desafio de fazer com que as máquinas sejam capazes de superar seus objetivos primários ou de “sobrevivência” para tornar primários elementos que são secundários. O curador dá como exemplo a reprodução como um objetivo primário de um organismo. Para isso, acasalar é um sub-objetivo que levará ao objetivo primário da reprodução, enquanto que atrair um parceiro é um método para acasalar e, portanto, se posiciona como um sub-sub-objetivo. “Para os humanos, o sexo e a beleza de um parceiro ganharam valores próprios. Assim como o próprio sentido do sexo se tornou valioso, também a arte o fez. Quando uma IA escolhe seus próprios objetivos, e então começa a persegui-los por si mesma, então ela estará no caminho para produzir arte”, defende o autor.
Porém, quando as máquinas começarem a fazer sua própria arte, será que nós, como humanos, iremos reconhecê-la? Para Nakazawa, isso pode começar a partir do ensino de história da arte como uma forma de encorajar esse novo olhar e apreciação. Por outro lado, o autor ainda vai mais adiante ao sugerir que uma IA não treinada possa produzir uma arte totalmente original ou mesmo irreconhecível para nós, o que as colocaria em um patamar semelhante à contracultura, por exemplo, ou então como nas obras produzidas por artistas com autismo, como é o caso de Moriya Kishaba, que teve seu trabalho exposto em Okinawa. “O futuro da arte de IA é análogo a um mundo cheio de artistas como Moriya antes de eles serem descobertos.”
Portanto, Nakazawa conclui seu texto entendendo que a arte produzida por uma verdadeira inteligência artificial pode ser tanto extremamente entediante quanto totalmente estimulante, e é desse modo que o progresso será representado. “Beleza, afinal de contas, não pode ser quantificada, e o próprio ato de questionar a definição de estética leva a arte adiante — algo que já vimos várias vezes ao longo da história da arte feita por humanos.”
Para o artista, a ideia de que a IA trará novas dimensões a essas questões também traz consigo o triunfo do materialismo, o qual pode, em última instância, acabar com o olhar do humano como um ser especial e único, portanto abrindo as portas para um mundo no qual não haveria nem mistério ou Deus, e no qual humanos atuariam também como meras máquinas feitas de materiais inanimados. “Se estivermos certos, então isso trará uma nova geração de artistas, e com eles, novas torres Eiffel que irão para muito além das ideias mais absurdas de nossa imaginação.”