Em artigo para o site The Conversation, o pesquisador Philip Goff defende a criação de um novo método científico que não se restrinja ao quantificável, mas que entenda a mente como matéria que foge às leis da física convencionais

Nas últimas semanas, não se falava em outra coisa a não ser a vinda do historiador israelense Yuval Noah Harari ao Brasil. O pesquisador se tornou conhecido não por apenas trabalhar com historiografia do passado, mas também por tratar do presente (como é o caso do livro “21 lições para o século 21”) e do futuro (como acontece em “Homo deus”), sendo que, diferente de outros autores como Ray Kurzweil, o que Harari traz de novidade em sua apresentação da singularidade e do transhumanismo é uma reflexão filosófica e problematizante dessa tendência.

Já em 2016, em uma entrevista publicada na Folha de S. Paulo, Harari dissertou sobre as revoluções tecnológicas e como a ciência, durante muitos anos, tornou-se a principal ferramenta para explicar o mundo (ou mesmo manipulá-lo). Hoje, porém, nos deparamos com o problema de que nem tudo consegue ser explicado cientificamente ou que a explicação científica não é mais suficiente por si própria. Temos grandes problemas como a consciência e o cérebro humano que ainda apontam para um mistério aos cientistas e uma pauta para a religião e para a filosofia. No entanto, Harari acredita que, ainda neste século, é possível que consigamos explicar o que é a consciência e isso significaria uma outra revolução na história humana.

De fato, é um grande para os cientistas entenderem como um órgão como o cérebro funciona, afinal, trata-se de um órgão com quase 100 bilhões de células, os neurônios, que se conectam a 10.000 outras e, assim, formam algo como dez trilhões de conexões nervosas. Apesar disso, já temos algumas pistas que nos ajudaram a entender melhor o comportamento humano, porém não o suficiente para conseguirmos explicar com precisão questões como sentimentos, emoções e experiências, isto é, como elas são sentidas e interpretadas pelo cérebro.

De acordo com um artigo publicado no site The Conversation, há uma grande dúvida entre os cientistas se, de fato, seremos capazes de explicar essas questões através de métodos científicos. Contudo, estamos diante de uma nova comunidade de pesquisadores que possuem uma outra estratégia para resolver o mistério. Ao longo do século 20, estudar a mente ou a consciência se tornou algo mal visto pela comunidade científica por sua dificuldade de observação: “Você não pode olhar dentro da cabeça de uma pessoa e ver seus sentimentos e experiências. Se formos apenas usar a observação pela perspectiva de terceiros, então não teremos nenhum fundamento na postulação da consciência.”

Isso, no entanto, não é um argumento impeditivo à pesquisa, afinal, elétrons também são pequenos demais para serem vistos e nem por isso eles deixam de existir ou de serem pesquisados. Cientistas, portanto, usam entidades não observáveis para explicar aquilo que conseguimos ver, como é o caso dos relâmpagos, por exemplo. Porém, no caso da consciência, não há nada realmente visível — “nós sabemos que a consciência existe não através de experimentos, mas pela nossa percepção imediata dos nosso sentimentos e experiências.”

“Então como a ciência pode explicar? Quando lidamos com os dados da observação, podemos fazer experimentos para testar se o que observamos está de acordo com o que a teoria prevê. Mas quando estamos lidando com os inobserváveis dados da consciência, esse método falha. Os melhores cientistas são aqueles capazes de correlacionar experiências inobserváveis com processos observáveis ao escanear o cérebro das pessoas e se apoiar nos relatos de suas experiência privadas de consciência.
Com esse método, podemos estabelecer, por exemplo, que o sentimento invisível da fome é correlacionado com a atividade visível do hipotálamo. Mas a acumulação dessas correlações não chega a formar uma teoria da consciência. O que nós realmente queremos explicar é por que as experiências conscientes são correlacionadas à atividade cerebral. Por que tal atividade no hipotálamo vem junto à sensação de fome?”

Em “Galileo’s Error: Foundations for a New Science of Consciousness”, Philip Goff, autor do artigo no site The Conversation, traz justamente o motivo pelo qual o método científico moderno acaba excluindo a consciência. Antes de Galileu Galilei, os cientistas acreditavam que o mundo físico era formado por qualidades como cores e cheiros, porém, Galilei apostava em uma abordagem quantitativa para o mundo físico e, por isso, ele propôs que essas qualidades não faziam parte do mundo físico, mas sim da consciência, que ele próprio denotou como algo fora do domínio da ciência. Essa perspectiva continua presente na ciência contemporânea, daí a persistência em correlacionar dados quantitativos com experiências qualitativas e a frustração advinda dessa impossibilidade.

Para Goff, a proposta do filósofo Bertrand Russell e do cientista Arthur Eddington podem ser mais bem sucedidas, apesar de terem sido propostas nos anos 1920. Os pesquisadores defendiam que a ciência física não diz realmente o que a matéria é de verdade, mas sim o comportamento dela. Isto é, a física pode nos dizer que a matéria tem uma massa e uma carga, propriedades que, para Goff, são expressamente comportamentais por tratarem de propriedades como atração, repulsão e resistência à aceleração. “A física não nos diz nada sobre aquilo que os filósofos chamam de ‘a natureza intrínseca da matéria’, o que compõe a matéria e o que é ela em si.”

Segundo Goff, esse é um grande buraco na nossa ciência que Russell e Eddington queriam preencher com a noção da consciência. Assim nasceu um tipo de “panpsiquismo”, uma visão antiga de que a consciência é uma característica fundamental e onipresente no mundo físico. Só que nessa nova onda panpsiquista não traz em si uma perspectiva mística como as anteriores: acredita-se que há apenas matéria (nada espiritual ou sobrenatural) e que ela pode ser descrita a partir de duas perspectivas. Enquanto a física descreve a matéria “do lado de fora” em relação ao seu comportamento, a matéria “por dentro” é constituída de “formas de consciência”.

Em outras palavras, Goff assume que a mente é, de fato, matéria e que mesmo as partículas elementares possuem formas básicas de consciência, afinal, a consciência pode variar em sua complexidade. “Nós temos boas razões para pensar que as experiências conscientes de um cavalo são muito menos complexas que aquelas dos humanos, e que as experiências conscientes de um coelho são menos sofisticadas que as de um cavalo. Conforme organismos se tornam mais simples, haverá um ponto no qual a consciência subitamente se desliga — mas é também possível que ela se esvaia mas não desapareça completamente, o que significa que mesmo um elétron possa ter um pouco de consciência”, escreve o pesquisador.

“O que o panpsiquismo nos oferece é um jeito simples e elegante de integrar a consciência na perspectiva científica. Falando estritamente, isso não pode ser testado; a inobservável natureza da consciência exige que qualquer teoria ad consciência que vá além da meras correlações não seja estritamente baseada no testável. Mas eu acredito que isso possa ser justificável por uma forma de inferência que pode ser a melhor explicação: o panpsiquismo é a teoria mais simples de como a consciência se encaixa na nossa história científica.
Enquanto nosso método científico não oferece nenhum tipo de teoria — apenas correlações — a alternativa tradicional que afirma que a consciência está na alma leva a uma desonesta representação da natureza na qual a mente e o corpo são distintos. O panpsiquismo evita esses dois extremos, e é por isso que alguns dos nossos mais proeminentes neurocientistas estão a usando como a melhor referência para construir uma ciência da consciência.”

Goff acredita que, no futuro, seremos apresentados a um novo campo da ciência estritamente focado na consciência, mas que esta não será igual ao método científico que conhecemos hoje. É possível que ela possa resultar ou ser impactada por outros campos da física, como é o caso da física quântica, mas ainda é muito cedo para realmente estabelecer correlações mais precisas sobre o que essa nova área e seus novos pesquisadores irão contribuir com a nossa compreensão de nós mesmos e, quem sabe, do quanto isso pode ter a ver com a chegada e o reconhecimento de novas consciências artificiais.

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