Como a arte pode se tornar uma nova forma mais compreensível de se comunicar as questões em torno de nossa sociedade tecnologicamente conectada.

O ensaio Towards an emancipatory understanding of widespread dataficationde Kathrin Sophie traz à luz algumas questões que talvez estejam passando despercebidas justamente por um problema apontado pela autora: certos assuntos relacionados à tecnologia, portanto ao nosso próprio universo contemporâneo permeado por esta, acabam não sendo compreendidos por todos, uma vez que para isso seria necessário ter um conhecimento técnico prévio. Mas não precisa ser assim. Se uma grande parcela das pessoas está submetida a um contexto tecnológico, usando ferramentas como redes sociais ou mesmo essa plataforma, é de grande serviço público e importância que criemos narrativas de fácil compreensão e absorção para todos.

Para isso, o ativismo sozinho talvez não seja suficientemente compreensível ou absorvido por todas as pessoas, uma vez que certas abordagens podem suscitar a possibilidade de existir uma visão certa e outra errada. A proposta de se combinar o ativismo à arte, no entanto, elimina essa rigidez, já que a arte está aberta para a interpretação e não se estabelece nenhum parâmetro do que é certo ou do que é errado — e é nesse conflito de ambiguidades que se dá a reflexão em torno daquilo que se experiencia.

Sophie então comenta sobre como o fato de estarmos tão entremeados pela tecnologia nos faz também pensar que elas próprias são perfeitas. E esse tipo de pensamento pode surgir a partir do momento que pessoas que trabalham com inovação usam metáforas para poder sugerir do que se trata uma nova tecnologia: assim como a internet já foi vista como uma onda, quando Bill Gates contextualizou a rede como se fosse algo imparável, incontrolável, assim como uma força da natureza. E, da mesma forma como a água é um direito humano, ele também prometeu em 1995 que a internet seria livre para qualquer pessoa surfá-la — daí a expressão “surfar na internet”. No entanto, como aponta Sophie, a metáfora náutica usada pelo fundador da Microsoft acaba por “obscurecer os propósitos capitalistas na internet e aumentar a confusão sobre ideias errôneas a respeito da cultura da convergência: que a internet seria livre, acessível e possibilitaria uma nova democracia digital.”

Isto é, se, por um lado, as metáforas que seriam usadas para facilitar a apreensão da tecnologia acabam por obscurecer aspectos importantes, também o ativismo em torno do assunto tem demandado da audiência um certo conhecimento tecnológico, o que Sophie descreve como “a habilidade de usar, administrar, acessar e entender tecnologia.” No caso do ciberativismo, é o conhecimento de programação e da cultura do open source que, muitas vezes, surge como um requerimento básico para a compreensão de certas desigualdades que são estabelecidas por conta da tecnologia.

“Em uma sociedade tecnologicamente conectada, na qual a dataficação e a capitalização do âmbito social e do corpo afetam todos, uma resposta ativista deve ser entendida e acessível para todo e qualquer indivíduo dessa sociedade — e não apenas para a comunidade com conhecimento tecnológico. O conhecimento tecnológica funciona como uma barreira às práticas ativistas, apenas permitindo uma elite de pessoas conhecedoras de tecnologia a se envolverem. Mas grandes quantidades de dados requerem a ação coletiva de uma grande parcela da sociedade tecnologicamente conectada. Isso afeta a todos, então todos deveriam ser capazes de responder e desafiar isso.”

Desse modo, Sophie encoraja um novo olhar sobre o ativismo em combinação à arte, entendendo que a arte é “uma voz de dissidência, uma ferramenta para avançar a justiça social e a democracia, sendo ela o core de uma estratégia revolucionária e uma fonte de memória e de modos futuros de conhecimento” (David & McCaughan, 2006, p.1). É a partir dela que, portanto, seríamos capazes de superar essa lacuna entre o conhecimento tecnológico e a prática ativista ao “sermos capazes de desmascarar os imaginários socialmente dominantes e criar contra-metáforas.”

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Para exemplificar essa proposta, a autora menciona a instalação Data Production Labour (2017) de Manuel Beltrán, fundador do Institute of Human Obsolescenceprojeto artístico que ficou conhecido ao propor a venda do calor humano como nova forma de trabalho remunerado pela mineração de criptomoedas. Simples e direta, a instalação convida os participantes a colocarem seus smartphones em uma estande e usar seu perfil no Facebook para ver a timeline durante dois minutos. Enquanto interagem com o dispositivo, duas câmeras monitoram e analisam diferentes parâmetros envolvendo movimento das mãos e expressões faciais. Apesar de simples, esses gestos são transformados em dados valiosos para o Facebook, tendo eles uma grande relevância especialmente para o âmbito da publicidade. “Portanto, o participante está trabalhando para o Facebook. Depois de trabalhar o seu turno, ele/ela adquire um recibo que aponta as unidades de atenção, a expressão facial e a velocidade que trafegou pela timeline durante o processo. Ele [o recibo] revela que o participante trabalhou para o Facebook criando dados e mais capital — e, portanto, convida ele ou ela a pedir por um pagamento”, explica Sophie.

O que a instalação de Beltrán aponta, portanto, é o potencial obscurecedor da metáfora usuário:

“Ao dizer que todos podem utilizar seu serviço gratuito, empresas capitalistas escondem a dataficação e exploração da sociedade tecnologicamente conectada. Assim como o termo plataforma, usuário é uma importante parte do trabalho discursivo das empresas de redes sociais que se dizem abertas, igualitárias e empoderadoras do indivíduo (Gilespie, 2010). É baseado nessas várias ideias que acadêmicos como Toffler (1980), Jenkins (2008) ou Bruns (2008) apontam que essas novas práticas de consumo de mídia com a ajuda da internet permitem uma comunicação de muitos para muitos, dando voz para todos e, portanto, constituindo uma nova democracia digital. Os monopólios de redes sociais se erguem sobre esses confusos parâmetros acadêmicos ao prometer voz, liberdade e igualdade para os usuários.Como Fuchs (2012) argumenta, “o conceito de exploração é frequentemente não explicado e esclarecido nessas circunstâncias” (p.143). Para fazer a dataficação e capitalização do usuário visível e compreensível, uma contra-metáfora para o termo usuário é urgentemente necessária. A instalação de arte Data Production Labour é capaz de fazê-lo ao propor uma contra-metáfora que põe o indivíduo como um trabalhador. Desse modo, ela cria um novo entendimento das estruturas de poder capitalistas em uma realidade dataficada. É acessível, assim como interativa, e provém uma narrativa para o observador que está primeiro navegando pela timeline de seu Facebook e então adquirindo um recibo que revela que sua atividade vale como um turno de trabalho. Data Production Labour permite a ação coletiva, porque ela enquadra os usuários como uma nova forma de trabalhadores. Portanto, ela [a instalação] cria uma identidade coletiva que não é oferecida em debates em torno dos conteúdos gerados pelos usuários em específico ou em geral. Ela enquadra um nós contra eles do ponto de vista de Mouffeian (2005) sobre antagonismo e consequentemente permite que façamos novas perguntas sobre a agência dos monopólios das redes sociais em uma sociedade dataficada e capitalista.”

Portanto, o que Sophie propõe em seu ensaio a combinação da arte como um motor de ativismo capaz de causar disrupção em um sistema guiado por “imperativos capitalistas”, assim sendo capaz de revelar essas estruturas de poder que permeiam nossa realidade que muitas vezes não parece inteligível nos discursos apresentados atualmente pelo ciberativismo — isto é, a falta de conhecimento técnico acaba sendo um empecilho para que a mensagem tão importante desses grupos acabe alcançando mais pessoas, o que é essencial quando tratamos de algo tão massificado quanto o processo de dataficação.

Como conclusão, Sophie escreve que obras como a de Beltrán “questionam os imaginários sociais e estabelecem contra-metáforas” que expõem a falibilidade da tecnologia e enquadram usuários como, na verdade, trabalhadores. Tais obras são capazes de empoderar o indivíduo ao fornecer uma “voz efetiva” e não apenas oferecendo uma oportunidade de vocalização. “A arte pode despertar uma adormecida sociedade tecnologicamente conectada ao desafiar e remodelar o entendimento dominante da realidade — portanto, ela pode fazer a sociedade agir”, finaliza a autora.

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